quarta-feira, 19 de novembro de 2014

FALAR CLARO

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Francisco José Viegas escreve hoje, na sua habitual crónica no "Correio da Manhã", sobre o ensino da língua pátria. Termina assim:

[...] A tese é simples: só lendo e estudando os bons textos se aprende a escrever e a falar sem erros. Uma parte do ensino da língua é feito por osmose, sim, e pelo contacto com a literatura, que vários génios recentes já tentaram afastar do ensino da língua, com o notável resultado que se conhece: um empobrecimento crescente do Português das novas gerações (e, já agora, da literatura). Este debate faz falta.

Não posso estar mais de acordo com o cronista. A juventude—mesmo a universitária—escreve quase só em dispositivos electrónicos, com ortografia e sintaxe Vodafone. Aliás, face a tal fenómeno, pergunta-se mesmo se a luta pró ou contra acordo ortográfico faz sentido porque já não nem se escreve segundo as regras velhas, nem segundo as regras novas. Mas nem é esse o problema. O problema é a incapacidade de exprimir com clareza a ideia mais simples; para não falar de um singelo encadeamento de ideias. Tal só se aprende lendo e ouvindo quem o sabe fazer. E é preciso recuperar o gosto perdido pela prosa e pelo estilo.
Atente-se no excerto de Camilo, a seguir transcrito e  tirado ao acaso do romance "A Brasileira de Prazins"—uma delícia literária. É claro que o brilho é também fruto da criatividade da narração; mas o estilo, habitual em Camilo, é soberbo.

[...] Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldelas na feira de Santo Urso. Achei-lhe um semblante  convidativo, animador a entabular-se com ele uma indagação de curiosidades sentimentais.
Fazia respeitável a sua batina sem nódoas o padre Osório. Parece que também as não tem na vida. Passa por  ser um velho triste, que não teve mocidade, nem as ambições que suprem os doces afectos do coração mutilados  pelo cálculo ou congelados pelo temperamento. Há trinta e dois anos que pastoreia uma das mais pobres freguesias do arcebispado. Pregou alguns anos com aplauso dos entendidos e inutilidade dos pecadores. A retórica é a arte de  falar bem; mas os vícios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.
Como pregava gratuitamente, o vigário de Caldelas era chamado por todos os mordomos e confrarias  festeiras. Quando se esgotavam os panegíricos dos santos mais ou menos hipotéticos, pediam-lhe que pregasse da  cura milagrosa de umas maleitas ou de um leicenço – casos que a pobre Natureza e o periódico chamado Esculápio só de per si não poderiam explicar.O vigário subia ao púlpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem muito singela. Afirmava  que Deus era tão bom, tão previdente, que dera à condição enfermiça do homem forças vitais, sobresselentes que  resistiam à destruição; e que a Natureza, grande milagre do seu Criador, só de per si era bastante para a si mesma se restaurar. 
Ora, um abade rico, bacharel em Teologia, que lhe ouvira estas ideias assaz naturalistas, perguntou-lhe, à  puridade, se ele negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sezões e dos leicenços acreditava mais na  lanceta e no sulfato de quinino. Depois, acrescentou: – Deus fez o supremo milagre da ciência para centuplicar as  forças à natureza enfraquecida. – O teólogo enrugou cientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou: – O  Senhor Reitor foi ferido da peste do século. Está iscado de Voltaire e de Alexandre Herculano. Deixou-se  contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor. – O reitor de Caldelas afastou-se triste, e nunca mais frequentou  o púlpito. [...]
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