quarta-feira, 21 de maio de 2014

ALMA MINHA

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Para os antigos gregos, o homem era um corpo animado pela alma, substância ou entidade imaterial capaz de sobreviver à morte e partir para nova vida sem perda da identidade. Mas a interrogação sobre como pode o homem—com corpo constituído por organização frágil, periclitante e fugaz—sobreviver à morte nunca deixou de ser  motivo de inquietação e foi, ao longo dos séculos, apenas respondida por teólogos. Perguntava-se mesmo, de forma infantil, como podia um ser devorado por carnívoros, ou por canibais, manter identidade bastante para viver depois de tão inesperado e infeliz acontecimento. Sobre isto, o teólogo grego Atenágoras não tinha dúvidas porque, segundo ele, a carne humana era indigerível; e académicos judeus afirmavam  que a espinha tem um osso indestrutível que preserva a identidade do corpo na vida, na morte e na ressurreição.
No fim do Século XVII, o filósofo inglês John Locke explicou ao mundo que não somos uma alma (se é que temos alguma, dizia), nem um corpo—somos apenas consciência. E Locke ia mais longe: se pudéssemos trocar a alma com alguém, continuaríamos a ser nós. Mas se trocássemos a mente, a consciência ia com ela para o outro e vice-versa.
Como animais que somos—embora uns mais que outros—é bastante claro que começamos no nascimento, ou na fecundação do óvulo,  e terminamos na morte. Quanto ao eu e à minha circunstância—ou à consciência—se o reduzirmos ao fruto de processo em curso dentro do cérebro, perdemos o pé. É como falar das moléculas da tinta que Leonardo da Vinci usou para pintar a Mona Lisa e dizermos que estamos a falar da Mona Lisa do Louvre—é tudo a mesma coisa, mas o zoom é diferente; e quanto maior é o zoom, paradoxalmente, menos se percebe o quadro e aquilo de que estamos a falar. Por ora, ainda não atinámos com o zoom correcto e, por isso, vemos muito pouco; ou melhor, só vê mesmo quem tem fé—assim é que é.
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