quinta-feira, 20 de maio de 2010

CASTILHO, A BIOLOGIA E O ESTILO


O indivíduo não é só a alma; o corpo que a reveste, a serve, e tantas vezes a domina, é mais que sujeito a contínuas e espantosas variações; renova-se incessantemente, perecendo e renascendo a cada instante; a sua carne de hoje era ainda ontem vegetais, ruminantes, aves, peixes, água nas fontes, gases na atmosfera, calórico no sol, terra debaixo dos pés, e electricidade sabe Deus por onde; congregaram-se essas miríades de partículas... existiu; amanhã partirão, todas elas destacadas para novas combinações e destinos, sem que o espírito lhes haja sentido a fuga, porque outras partículas, acorridas do universo, terão vindo rendê-las sem estrondo nem abalo.
N'este sentido cada indivíduo é simultaneamente filho, irmão, e pai, influidor e influído, conservador, destruidor, modificador, herdeiro, usufrutuário, e testador, de quantos entes sensitivos, vegetativos, inorgânicos, imperceptíveis, imponderáveis, são, como ele, parcelas componentes do planeta em que ele se proclama senhor e potentado.
Mas se esta desidentificação incessante do corpo escapa às nossas percepções, por não apresentar de hora para hora mudanças apreciáveis no ser, no sentir, e no pensar, já assim não é quando nos outros, e em nós mesmos, confrontamos a infância com a puerícia, a puerícia com a adolescência, a adolescência com a virilidade, a virilidade com a velhice, a velhice com a decrepidez; ou, suprimindo os graus intermédios para maior evidência, a caducidade com a madureza, a madureza com o desabrochar no berço.
Que há aí de comum?!
Unicamente o nome, acidente impessoal, insignificativo, nulo.
O corpo é manifestamente diversíssimo, e em tudo outro; e com o corpo outro e tão diverso, outras e diversas igualmente são as faculdades íntimas, outro e diverso o sentir, o querer, o recordar, o ambicionar.
Não são épocas de uma vida; são vidas verdadeiramente distintas, talvez contrárias, que se encadearam por um trabalho simultâneo e oculto da Natureza e da fortuna, dos sucessos e de nós mesmos.
É por isso que o louvor ou vitupério, a recompensa ou o castigo, conferidos tarde, contêm sempre mais ou menos, uma injustiça distributiva; e talvez duas: preteriram aquele que fez, e já não existe, e vão-se dar ao que existe mas não fez. Que de vezes se não haverá supliciado um justo pelo malfeitor que anos atrás o precedera, e nada mais lhe legara que o seu nome e umas parecenças no semblante!
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António Feliciano de Castilho, in "A Chave e o Inigma"
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Castilho confabula com elegância e revela a visão biológica possível na época. Mas a sua lógica é enganadora porque a rotação bioquímica do corpo não implica perda de identidade; que é conferida pelo perfil genético - imutável com a saída e entrada de moléculas. Cada uma é substituída por outra exactamente igual. Se trocarmos todos os dias um tijolo do muro por outro, não mudamos o muro se o tijolo for igual. O material é outro, mas não diferente. E o produto funcional desse aglomerado químico que Castilho deixa entender ser diferente, não é.
Mas não trouxemos aqui o texto para dizer isto. Fizemo-lo porque é uma bela peça literária: de antologia, embora não de Biologia.
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